Em fevereiro de 1997, o escocês Ian Wilmut, um brilhante embriologista de 52 anos, anunciou a primeira clonagem de um animal adulto, uma ovelha. Todo mundo só falou disso, mas explicar que é bom, quase ninguém explicou. Agora você vai entender tudo direitinho. Por Flávio Dieguez A notícia da façanha de Wilmut foi uma bomba, uma unanimidade, uma festa e tanto. Bem, comecemos pelo verbo "clonar", que por sinal ainda não faz parte do Aurélio. Esse neologismo genético significa fazer cópia, artificialmente, de um ser vivo. Aliás, "clonar", em si, nem é uma novidade.
Cientistas do mundo inteiro andam "clonando" por aí há quase vinte anos. Desde 1978, vários tipos de animais são copiados e, se não fosse proibido, já teriam sido anunciados os clones de gente. Mas antes as cópias eram obtidas a partir de embriões e embriões, você sabe, são aqueles pequenos ovos gerados a partir do encontro de um óvulo com um espermatozóide. Portanto, a técnica de clonagem partia da multiplicação forçada de embriões.
Reproduziam-se num tubo de ensaio diversos embriões de uma matriz, que depois eram colocados nos úteros de várias fêmeas. O que Wilmut conseguiu de extraordinário foi quebrar dois tabus. Primeiro, eliminou de seu clone a necessidade do encontro de um espermatozóide com um óvulo até aqui indispensável para formar o embrião. Wilmut produziu sua criatura usando um óvulo virgem, que nunca havia sido fecundado. Para isso, retirou desse óvulo o seu núcleo original e pôs no lugar os genes de uma célula comum de outra ovelha. Esta é que foi "clonada". Da que era dona do óvulo, coitada, nada restou no filhote. Aí, veio o segundo e mais espetacular tabu: o cientista escocês fez um embrião com os genes de uma célula comum, ou melhor, especializada. Essa célula especializada veio de uma glândulas.
A evolução passa pelo sexo há cerca de 500 milhões de anos. E ela fica melhor assim. Havendo espermatozóides e óvulos trocando cargas genéticas, as possiblidades de nascerem indivíduos diferentes é maior, pois os genes do pai se misturam aos da mãe num organismo novo. O que é bom: mais indivíduos diferentes significa mais chance de evolução. Se todos fossem como as bananeiras, os filhotes seriam sempre idênticos aos pais, geração após geração, e a evolução seria muito lenta, causada só por uma ou outra mutação dos genes.
Nas espécies que se reproduzem por óvulos e espermatozóides, que são a maioria, a natureza criou uma sábia proibição: nenhuma outra célula do corpo está autorizada a participar da reprodução. Só as células sexuais cuidam disso. Foi aí que Wilmut anunciou um revertério assustador, derrubando a velha lei. Ele conseguiu desprogramar uma célula especializada e fazer com que seu núcleo, levado para dentro de um óvulo, virasse um embrião. "Com isso, ganhamos uma capacidade reprodutiva que é típica das plantas", explica o professor Otto Crócomo, da USP, um dos maiores especialistas em clones de vegetais no Brasil. Como é uma máquina complexa, o organismo só funciona direito se cada parte tiver função bem definida e se todas as partes estiverem bem coordenadas. É por isso que as células se especializam durante a gestação.
Umas virarão olho, outras fígado etc. Mas, mesmo especializadas, todas as células têm os mesmos genes. Logo, o que Wilmut precisava fazer, era apagar as instruções inscritas nos genes da célula tirada da ovelha adulta, a que seria a mãe de Dolly. Essa célula só sabia ser mama, mas o escocês deu a ela a ordem de ser embrião. Como? É o que você vai ver a seguir. O que eu vou ser quando crescer? Veja como as células se especializam, aprendem a executar uma tarefa específica e usam apenas alguns dos seus genes.
Como embrião, a célula ainda não sabe o que vai ser quando crescer. Sua carga genética, o DNA dentro do núcleo, está livre para assumir qualquer função. O embrião cresce porque as células se multiplicam. Aí elas começam a desligar os genes de que não vão mais precisar Uma célula da mama só usa os genes que interessam à sua função, como o que manda fazer uma das muitas proteína do leite. No final, só ficam ligados os genes que cada célula especializada usa em sua função dentro do organismo. Como tapear uma célula de ovelha Para realizar o sonho impossível de fazer de sua célula especializada um embrião, Ian Wilmut apostou num palpite sensacional: a fome. É um palpite que ainda não está inteiramente comprovado mas, ao menos em teoria, é fabuloso. Vamos a ele. Primeiro, submeteu a célula a uma dieta de sais comuns, como cloreto de cálcio e sulfato de magnésio, o equivalente a um chá com torradas. Com isso, o núcleo teve que reduzir suas atividades a quase zero, entrando num estado letárgico que os embriologistas chamam de quiescente. Nesse estado, a célula interrompe o seu ciclo de crescimento normal.
O truque fez essa quiescência acontecer quando a célula ainda era bem jovem. Essa é a fase G-Zero, muito breve. É o único instante em que os genes, dentro do núcleo, descansam e param de distribuir as ordens de crescimento e multiplicação para a célula. Nessa fase, as operações ficam a cargo de proteínas especiais do citoplasma. A função dessas proteínas é justamente entrar no núcleo e preparar os genes para o início de um novo ciclo de crescimento e reprodução. Nesse instante preciso, transferindo esse núcleo para um óvulo cujo núcleo havia sido retirado, o cientista deu início a um grande logro. Sem essa tapeação, a experiência iria fracassar. Lembre-se de que óvulos e espermatozóides só têm metade do material genético de uma célula normal.
Eles só formam um embrião quando se fundem, somando suas duas metades. Assim formam o embrião. Pois ao receber um núcleo novo, que contém o material genético completo, o citoplasma daquele óvulo vai cair numa ilusão biológica (imagine, só para entender o truque, que os óvulos caiam em ilusões). Então, o citoplasma vai atuar como se o núcleo já fosse um embrião. Suas proteínas, entram lá dentro e reprogramam os genes totalmente, disparando o início do crescimento e da multiplicação celular. Ou seja, o genes também serão cúmplices da ilusão. Em vez de autorizar um crescimento de novas células de mama, o que seria natural, assumem sem problema o papel de embrião. E tem início uma multiplicação celular para formar uma ovelha novinha. "As proteínas do citoplasma realmente podem ter reprogramado os genes", confirmou à SUPER o embriologista Colin Stewart, do Centro Frederick de Desenvolvimento e Pesquisa do Câncer. Claro que a experiência ainda requer comprovações. Mas, desde já, o embriologista escocês abriu novas portas para a Biologia. O segredo de Wilmut Veja como o cientista construiu um embrião simplesmente obrigando uma célula especializada a passar fome.
A história começa com a célula da mama que ia virar um clone. Antes disso, foi preciso interromper o seu ciclo normal de reprodução. Acompanhe a experiência
1. A célula começa o ciclo bem jovem. Apesar de ser um bom momento para clonar, todas as tentativas até hoje deram errado.
2. Na segunda fase do ciclo, a célula fica pronta para dividir-se em duas. As clonagens a partir daqui também não funcionaram.
3. Terceira fase. A divisão já vai acontecer e dar origem a uma outra célula da mama. As chances de clonagem são mínimas Veio então o grande lance.
A célula jovem recebeu uma dieta bem magra de sais, que são o que ela come. O seu núcleo (azul) foi acomodado dentro de um óvulo (verde) tirado de uma outra ovelha A fome foi a chave do sucesso, por um motivo muito simples: ela fez o núcleo da célula interromper o seu ciclo e ficar num estado letárgico. E aí, ao ser colocado no óvulo, deixou de lado as instruções para produzir outra célula de mama. Em vez disso, passou a agir como um embrião e gerou uma nova ovelha, a Dolly.
Fonte: col1107.vilabol.uol.com.br